O  culto ao Senhor Santo Cristo

Nos séculos XV a XVIII intensificaram-se muito na Europa ocidental as devoções à Paixão Dolorosa e as correspondentes representações artísticas (quer pinturas, quer esculturas em madeira, pedra, marfim ou metal precioso), como a do momento em que Jesus Cristo, depois de flagelado e humilhado, com feridas em chaga, coroa de espinhos na cabeça, cana nas mãos e manto sobre os ombros, é mostrado aos judeus que tinham exigido a Sua morte e aos quais Pôncio Pilatos, o governador romano da Judeia, diz: “Ecce Homo !” (“Eis o homem !”). Uma destas imagens é um busto de tamanho natural esculpido em madeira, conhecido popularmente como “Senhor Santo Cristo dos Milagres”, que se encontra no Convento de Nossa Senhora da Esperança, em Ponta Delgada, e que desde há cerca de trezentos e trinta anos tem recebido uma grande veneração. A sua história antes da segunda metade do século XVII parece não existir de todo, ausência que motivou a formação de uma lenda tão bonita quanto cheia de inverdades e improbabilidades entrelaçadas com situações realmente ocorridas, como é próprio das lendas.

Comecemos pelos factos históricos. Em 1523 algumas jovens e meninas emparedaram-se voluntariamente numa ermida junto ao mar na costa sul da ilha de São Miguel, na Caloura (então “Vale de Cabaços”), para aí viverem religiosamente. Pouco depois, de diligências formais externas junto da Santa Sé resultou a passagem oficial desse espaço, entretanto melhorado, a mosteiro feminino, o primeiro nesta ilha, da Ordem de Santa Clara e com a invocação “de Nossa Senhora da Conceição”. Porém, o perigo constante de assaltos por piratas levou alguns dos familiares com mais posses a erigir e fundar, com o nome “de Santo André”, uma segunda casa da mesma Ordem mas em Vila Franca do Campo, para a qual se mudaram em 1535 apenas as parentes dos instituidores. As restantes vieram a ser, em 1541, as freiras iniciais do terceiro convento feminino micaelense, também ele de Clarissas, o “de Nossa Senhora da Esperança”, na vila de Ponta Delgada. Quanto à dita imagem de Cristo na Paixão no passo “Ecce Homo”, um estudo realizado em 2019 concluiu que foi feita no século XVII, em ano ainda por determinar, e que antes disso não existe qualquer referência a ela.

A lenda imaginou e divulgou, para este passado tão escorreito, várias incrustações de sedução: uma viagem marítima e terrestre até Roma, que teria sido corajosamente efetuada por duas das jovens auto-enclausuradas para assim solicitarem ao Papa a categoria de convento de Clarissas para a sua comunidade; um encontro muito bem sucedido delas com o Sumo Pontífice, que lhes teria concedido de imediato o documento com a autorização desejada e lhes teria feito a generosa oferta de um busto de “Ecce Homo”; um salvamento miraculoso e marítimo dessa imagem que, no regresso das jovens a Vale de Cabaços, teria caído do barco e flutuado até à casa comunitária, situada a curtíssima distância (numa versão da lenda, a queda seria devida a uma tempestade e o busto só teria sido recuperado algum tempo depois, e noutra versão ele teria viajado separadamente e sido encontrado de modo imprevisto em rochas junto à mesma costa e casa em resultado dum hipotético naufrágio que não teria deixado nenhum outro vestígio e que ninguém sentira); uma ida deste Santo Cristo para o mosteiro da Esperança, em Ponta Delgada, juntamente com as freiras fundadoras. 

A partir de 1683, esta imagem do Senhor Santo Cristo, colocada na capela do coro baixo perto das grades para a igreja pública do convento, começou a ser alvo de um cuidado crescente por parte de uma religiosa que então professou, Teresa da Anunciada. Ela recebeu da sua irmã de sangue Joana de Santo António, que a visitava com frequência, as primeiras chamadas de atenção para a expressão do rosto da escultura, os aparentes poderes milagrosos que esta passaria aos objetos que nela tocavam, e o facto de se encontrar desprezada uma vez que, além de lhe cair em cima muito pó vindo das frinchas do coro alto, nenhuma lâmpada de azeite estava acesa à sua frente. A dignidade que a freira Anunciada passou então a querer reatribuir à imagem foi motivada igualmente pelo facto de se tratar de um antigo sacrário, como lhe fora dito, e de, em simultâneo, ilustrar a doação de Deus à Humanidade na Paixão e na Ressurreição; assim, a veneração a esta escultura religiosa foi desde o início sendo entendida como um reforço da oração e do percurso dos fiéis ao encontro de Deus e de tudo o que a imagem representa, e não como algo individualizado.

Esta primeira Zeladora da imagem empenhou-se profundamente em cumprir aquilo que dizia ser a vontade divina que lhe era transmitida diretamente: divulgar amplamente os prodígios obrados pelo Senhor Santo Cristo ao resolver situações consideradas impossíveis, para assim se alcançar maior glória de Deus, maior consciência da pequenez humana perante os Seus desígnios e poder, e maior devoção. Com este espírito foi a Madre Teresa conseguindo variadas e crescentes doações em dinheiro, trabalho, géneros e materiais, graças às quais, mesmo após o falecimento dela, a imagem foi sendo honrada sucessivamente com capelas mais dignas, capas, jóias e resplendores, canas e cetros, coroas de espinhos, medalhões, cordas de pérolas, todas elas manifestações de agradecimento da sociedade para onde este culto foi extravasando.

Uma primeira procissão pelas ruas de Ponta Delgada, ocorrida possivelmente em 1698 ou 1700, foi pensada pela Madre Teresa como uma ligação querida e estabelecida pelo próprio Senhor entre os conventos femininos (todos de clausura, pelo que a imagem entrava na respetiva igreja, era vista aí pelas religiosas através das grades do coro alto, e voltava para a rua), os masculinos e os demais habitantes da cidade. Numa ocasião posterior, serão estes a pedir àquela Zeladora uma nova saída da imagem, para assim se rezar em comunidade pelo fim de uma crise sísmica. Desconhece-se hoje em que anos tiveram lugar as procissões seguintes; não obstante, uma grande certeza existe: no século XVIII a sociedade de Ponta Delgada tornou-se voluntariamente vassala do Senhor Santo Cristo, representado no busto do Convento da Esperança, e anfitriã e organizadora duma procissão anual em Sua homenagem, prática que se mantém até hoje.

Para a consolidação e expansão deste culto multissecular, com devotos em numerosos países e regiões, salientam-se, no decurso dos tempos, as sucessivas Zeladoras da imagem, as Congregações religiosas que se seguiram no Convento à Ordem de Santa Clara, a Irmandade existente desde 1765 e responsável pela organização da procissão, e o Santuário Diocesano do Senhor Santo Cristo (criado em 1959).

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