Não se brinca com a fé de um povo

Não se brinca com a fé de um povo

ARTIGO – CORREIO DOS AÇORES – Correio Económico

17 de Julho de 2020

Não se brinca com a fé de um povo

O culto ao Sr. Santo Cristo dos Milagres confunde-se com a história das nossas ilhas, especialmente com a história da ilha de São Miguel.

Na sua origem esta a devoção de duas jovens que com a sua vocação, fé e virtude, rapidamente conquistaram os corações de todos os que com elas contactavam.

Tudo começou no Convento da Caloura, mas a 23 de abril de 1541 houve a mudança definitiva para o Mosteiro da Esperança, na então Vila de Ponta Delgada.

Foi em 1700 que se realizou a primeira procissão em honra do Sr. Santo Cristo dos Milagres.

As festas do Senhor, que se realizam no quinto domingo a seguir a Pascoa, são as maiores festas religiosas da nossa região e as segundas maiores do país, logo a seguir a Fátima.

São aos milhares os peregrinos que por esses dias afluem a Ponta Delgada.

Eles vem de perto e de longe, seja a pé, de carro, de barco ou de avião. Vem de todas as partes da ilha, das outras ilhas, da Madeira, do continente português e de outros países.

Da nossa diáspora, principalmente dos Estado Unidos e Canada, chegam os nossos imigrantes, através de uma verdadeira ponte aérea que e construída por aqueles dias.

Ponta Delgada enche-se assim de gente.

Gente de fé que vem a descoberta, ou que traz consigo uma alegria imensa de voltar a casa.

Gente de fé que vem agradecer o que lhe foi concedido, ou pedir ao Sr. Santo

Cristo dos Milagres que atenda as suas súplicas, ou que lhes conceda as graças que solicitam.

Gente de fé com rostos repletos de sorrisos, mas por vezes também, com rugas vincadas pelo sacrifício, dor e sofrimento.

O pagamento das promessas na manha de sábado, a mudança da imagem na tarde do mesmo dia, a missa solene de manha e a procissão pelas ruas de Ponta Delgada, na tarde de domingo, são os momentos altos das festas.

A iluminação com milhares de lâmpadas, o cheiro a pipocas, o algodão doce, o som das nossas filarmónicas, os sabores da nossa gastronomia, que enchem as tascas, o bazar e o fogo-de-artificio, abrilhantam as festas.

Mas este ano, por via da pandemia da COVID19, que ainda marca os nossos dias, as festas, tal como as conhecemos, foram suspensas. Foi a primeira vez que aconteceu em 320 anos.

Fomos assim convidados a viver as festas de forma diferente, a substituir a dinâmica e o movimento das ruas da nossa cidade pelo recato das nossas casas, a substituir aqueles segundos em que nos cruzamos e olhamos, ano apos ano, com a imagem do Sr. nas ruas da nossa cidade, e que nos dão a forca necessária para enfrentar mais um ano, por um momento de recolhimento e oração.

Estamos perante umas festas que refletem atos de fé, que na minha opinião, não são suscetíveis de serem sufragados em qualquer tipo de circunstancias.

A este propósito, numa atitude irrefletida, irresponsável e desrespeitosa a maioria PSD na Camara Municipal de Ponta Delgada, decidiu candidatar a procissão do Sr. Santo Cristo dos Milagres ao concurso nacional das 7 Maravilhas da Cultura Popular SICAL.

Mais grave se torna esta atitude, quando agora se sabe, que a candidatura foi apresentada contra a vontade da Irmandade do Sr. Santo Cristo dos Milagres e sem terem sido auscultados previamente, a Diocese, o Santuário e os órgãos de poder local das freguesias onde a procissão se realiza, supostamente por falta de tempo do executivo camarário, que recorde-se e composto por cinco elementos do PSD a tempo inteiro.

De acordo com informação prestada pela atual Presidente da Camara Municipal de Ponta Delgada, posteriormente a candidatura, o que não deixa de ser bizarro, mas mais vale tarde do que nunca, foram contactados: “o Senhor Bispo de Angra e Ilhas dos Acores, Dom João Lavrador, telefonicamente, que preferiu não se pronunciar, por entender que a Camara tinha, motu próprio, legitimidade para apresentar candidaturas ligadas a cultura popular do seu concelho”; e “o Reitor do Santuário do Senhor Santo Cristo dos Milagres, Cónego Adriano Borges, em reunião presencial, tendo-se manifestado contrario a mesma”.

Permitam-me aqui realçar a posição do Cónego Adriano Borges, que não lavou as mãos como Pilatos, e soube interpretar como ninguém o sentimento e a fé de um povo, tendo a sua posição sido decisiva para que a candidatura fosse cancelada.

Felizmente o bom senso imperou e a Camara Municipal recuou na decisão irrefletida, irresponsável e desrespeitosa de submeter a votação a Procissão do Sr. Santo Cristo dos Milagres.

Que aprendam a lição, não se brinca com os sentimentos e a fé de um povo.

A concurso, no que concerne ao concelho de Ponta Delgada, continuaram as Escamas de Peixe, na categoria Artesanato, e, ainda, a Lenda das Sete Cidade, na categoria de Lendas e Mitos, neste último caso, sem sequer informar a Junta de Freguesia das Sete Cidades, o que demonstra bem, o respeito, ou a falta dele, que o executivo camarário tem para com os restantes órgãos eleitos democraticamente.

Tudo isto denota uma desorganização e falta de rumo, inaceitáveis na maior autarquia dos Acores.

Ponta Delgada merece mais. Ponta Delgada merece melhor.

 

Por: Vitor Fraga

Chairman & CEO da SDEA